Despertei naquela manhã de terça feira, envolvido por um entusiasmo inexplicável, como se tivesse recebido um aconchego amigo dos Irmãos Espirituais, enquanto meu corpo repousava.
As crianças dormiam. Tomei o café, dei um beijo na minha Rita, sentei no Dauphine e em poucos minutos, lá esta eu na máquina de costura que ganhei dos meus avós como presente de casamento. Tentava ainda adivinhar a razão de tamanho bem estar, quando entrou um menino que aparentava onze anos me perguntando se eu era o Álvaro, frequentador do Centro Espírita.
Respondi que sim e ele depois de me fitar esperançoso, disse sem rodeios:
Eu minha mãe e minhas duas irmãs chegamos de Caraguatatuba há alguns dias. Lá a chuva foi tão forte que praticamente arrasou com a Cidade, e nós que perdemos tudo, viemos buscar abrigo em São Paulo, mas estamos morando numa cocheira que chove dentro...
Enquanto prestava atenção nos olhinhos brilhantes daquele menino voltei à mente para os recursos que conseguimos durante a Campanha do quilo e pensei que aquele material arrecadado poderia ajudar a pequena família infortunada, porém confesso que me surpreendi quando Antoninho disse:
-Então eu vim pedir ao senhor para que me arrume um emprego, pois eu preciso comprar uma casa que abrigue minha mãe e minhas duas irmãs.
Desconcertado, fiquei olhando para o magro menino sem saber o que dizer. Não sei se estava buscando um tempo para me refazer do inesperado, ao solicitar ao garoto para que me procurasse no dia seguinte, confesso que me achava diante de uma missão impossível... Arrumar um emprego para uma criança, com esse trabalho, ela pudesse adquirir uma casa para os seus familiares? Nem pensar...
Deixar de pensar era impossível. A imagem daquele menino de olhos muito vivos descalço e vestindo calças curtas, não me saia da mente.
Ao fim do expediente, retornei a minha casa, e quando me encontrava na lavanderia junto ao tanque de lavar, me limitei a olhar para a lata de graxa, que era utilizada para lubrificar a bomba do poço, e me ocorreu uma ideia...
Com algum entusiasmo e sem muitas esperanças, me vali de uma pequena espátula e a fixei na ponta de um cabo de vassoura e assim que encerrei essa etapa, tratei de limpar um pincel que amarrei na extremidade de uma velha vara de pesca. Juntei esses apetrechos à lata de graxa e os coloquei no porta malas do Dauphine.
Na manhã seguinte retirei do carro aquele material e coloquei no interior da Alfaiataria, caso Antoninho resolvesse voltar, o que não demorou:
-Bom dia “seu Arvaro”! E então o senhor arrumou o meu emprego?
-Antoninho – disse eu enquanto acariciava a sua fronte – não se trata propriamente de um emprego, mas não deixa de ser um trabalho honroso...
-O que é então?- indagou ansioso.
Mostrei a ele as ferramentas que eu havia preparado no dia anterior e expliquei em detalhes quais as suas funções. Sugeri para que em visitas aos armazéns se prontificasse a engraxar as suas portas por um determinado valor.
-E quanto eu cobro?
-Você pode cobrar quinhentos cruzeiros cada porta (não sei qual o valor desse dinheiro na época), mas tome cuidado para não fazer uso de bebidas ou cigarros, pois em bares você encontrará eventualmente alguém que possa lhe oferecer essas drogas.
Costurei uma pequena sacola de pano onde coloquei a lata de graxa e o Antoninho foi à luta todo feliz. Confesso que me emocionei profundamente, ao ver o brilho de esperança no olhar daquele menino.
O dia transcorria normalmente e no fim da tarde Antoninho entrou na Alfaiataria dizendo enquanto mostrava os bolsinhos refertos:
-Eu vim dividir a féria com o senhor!
-Parece que deu bom resultado! –Exclamei – mas coloque o dinheiro sobre o balcão para que possamos contá-lo.
Contei e disse admirado:
Quatorze contos e quinhentos! Você engraxou vinte e nove portas?
-Sim seu Arvaro alguns não queriam, mas assim que eu explicava a minha situação eles diziam: Ô raios pode engraxare...
-Antoninho esse dinheiro é todo seu e de sua família, você não tem que dividi-lo comigo.

O menino me beijou e se foi.
Por volta de dezoito meses se passaram e durante essa fase não tive mais noticias do pequeno operário, até que uma jovem senhora entrou no pequeno estabelecimento e disse após a saudação:
-Sou a mãe do Antoninho e vim agradecê-lo pelo emprego que o senhor arrumou pra ele!
-Muito prazer minha senhora, mas eu não arrumei um emprego para o seu menino, fiz a ele apenas uma sugestão de trabalho que viesse aliviar um pouco as carências da família.
– Mas o senhor não vai nos negar a alegria de tomar um café com a gente? Me dê essa honra!
Fechei a porta da Alfaiataria (por aí vocês imaginam o movimento que havia no meu comércio) convidei a senhora para entrar no automóvel e segui em direção a vila Menk que ela havia indicado. Estacionamos diante de uma cerca de arame farpado e de lá visualizei uma edícula no fundo do quintal.
Entramos na casa simples pintada em caiação e o piso todo em vermelhão que brilhava cheirando limpeza, Convidado a sentar me acomodei e a magra senhora afirmou que iria passar um café.
Não me contive e perguntei se o aluguel que eles pagavam por aquela moradia era muito elevado. Ela respondeu com a voz trêmula:
-Não senhor Álvaro, esta casa foi construída com o dinheiro ganho no emprego que o senhor arrumou pro Antoninho...
Em tempo: Eu ouvi o relato do menino sobre a enchente em Caraguatatuba em 1967 e nem fui checar. Hoje em julho de 2014 procurei no Google e encontrei:
Enchentes e deslizamentos de terra em Caraguatatuba em março de 1967. Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre. Ir para: navegação, pesquisa
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