Quando
eu contava com apenas cinco anos, meus pais se separaram e deixaram-me aos
cuidados dos meus avós. Todos, inclusive meus tios e tias estavam envolvidos
com os próprios problemas, que não eram poucos, já que os efeitos da segunda
guerra mundial atuavam nocivamente na economia brasileira, tornando a
sobrevivência muito difícil, sendo que
até o pão passou a figurar como artigo de luxo. Todo o trigo utilizado em nossas
padarias era importado e as travessias acabaram ficando impraticáveis.
Na periferia
onde eu morava, numa determinada tarde, o Circo recém-chegado exibia todo o seu
plantel, com os felinos enjaulados sobre as vagarosas Ramonas, enquanto os
símios faziam estripulias e micagens, divertindo os moradores daquela rua,
apoiados nas suas respectivas muradas.
Quando vi o elefante dobrando a esquina e caminhando
altaneiro raspando a tromba no solo a procura de algo para comer, não me
contive e nem sequer notei a presença de uma dezena de meus familiares que
também acompanhavam o sonoro desfile. Corri para o interior da velha casa, subi
na cadeira, enfiei o braço dentro da sacola de pão e retirei a enorme bengala
(filão de pão) e sem perder tempo voltei na toda, e qual um verdadeiro
lanceiro, ao impulso do corpo, lancei em direção ao elefante o pão que foi
comprado as quatro e meia da manhã, depois de enfrentarmos uma quilométrica
fila, para finalmente chegarmos no disputado balcão da padaria.
Estava orgulhoso com meu lance que me pareceu ser
uma jogada de mestre, pois toda a minha família acompanhou com os olhos
arregalados a linha parabólica que o apetitoso pão percorreu, para depois
pousar diante do enorme animal, que não se fez de rogado e mais do que depressa
abocanhou a crocante iguaria, cujos ruídos se confundiram em meus ouvidos com
os tabefes que levei da família toda, ali mesmo.
Nessa época, embora tomasse algumas bordoadas em
reprimendas pelas traquinagens cometidas, o que mais me amedrontava, não eram
os chamados vivos, mas, sim os fantasmas que rondavam o meu leito,
divertindo-se com o apavoramento que eu demonstrava ao sair aos gritos pelo
quarto afora pedindo socorro.
– Esse menino está ficando louco! – diziam os
adultos - precisa ser internado no Juqueri! A culpa é dos seus pais que não tem
juízo, nos mandando esse traste para fazer algazarra em plena madrugada!
Dois anos se
passaram, e durante esse período, o entardecer para mim era o início de um
tormento, pois, assim que anoitecia, o reencontro com aquelas estranhas
criaturas parecia inevitável. Eram pontuais, bastava que me aconchegasse ao
leito e lá vinham eles novamente, perfilando-se ao lado da cama, fazendo
chacotas.
Estava com sete anos e fui matriculado no curso
primário da escola Romeu de Morais, situada na Vila Ipojuca. Essa casa de
ensino (chamada Grupo velho) posteriormente ganhou uma sede nova,
transferindo-se para a rua Toneleros no mesmo bairro.
De certa forma sentia-me feliz, pois ganhara um bom
amigo, o Roberto, menino generoso que durante o recreio, dividia comigo o
lanche que todos os dias sua mãe colocava em sua maleta escolar. Brincávamos
chutando uma bola de pano em meio ao pátio, até o toque da sineta anunciar a
ordem de retorno à classe.
Transcorridos os primeiros meses do ano letivo,
entramos em férias. Nesse espaço de tempo aguardei ansioso o dia de retorno as
aulas, e quando o esperado momento chegou, dirigi-me a escola antes do horário
habitual para rever o meu grande amigo.
Aguardei no
pátio a sua chegada até soar o terceiro sinal e entrei na sala de aulas em
companhia dos demais alunos. Sentei-me na carteira de costume e esperei pela
chegada do Robertinho, colocando minha sacola de pano no assento ao lado para
reservar o seu lugar .
A professora depois de desejar a todos um feliz
retorno, ao notar que havia uma carteira vazia a minha direita, determinou para
que a menina Neuza ocupasse aquele lugar, já que ela encontrava-se na última
fileira, sozinha.
Protestei voltando-me para a professora. Aleguei
que aquela cadeira pertencia ao meu amigo e que em breves minutos ele chegaria,
ao que ela depois de ajeitar os óculos afirmou enérgica :
– Cale a boca menino!
Acontece, que nesse instante o Robertinho acabara de
chegar recostando-se na parede, entre a lousa e a porta de entrada.
Professora !- gritei- o Roberto chegou, nada mais
justo do que venha ocupar o seu lugar!
– Cale a boca menino, já
disse!
Na certa ela resolvera punir meu
amiguinho, mantendo-o ali o tempo todo assistindo a aula inteira em pé, por
haver chegado atrasado.
Deu o sinal
de encerramento e a molecada saiu em desabalada carreira quase atropelando
Robertinho que ficou a minha espera.
Você viu ?- afirmei com indignação –dona Zélia não
teve a menor consideração e o deixou de castigo!
– Não faz mal - respondeu demonstrando o olhar
embaciado - já não estou mais escrito nesta escola e freqüentarei outra mais
próxima de minha casa nova.
– Então me dê
o seu novo endereço – solicitei - assim que puder prometo que lhe farei uma
visita.
– Não se
preocupe, nessa escola estarei cumprindo um horário diferente e lhe visitarei
sempre que for possível.
Robertinho depois de um breve sorriso deu-me um
abraço carinhoso e se foi.
A partir de então meu desempenho na escola caiu
muito. Com isso a professora passou a enviar recados para os responsáveis por
mim, a fim de saber o que de fato estava ocorrendo, qual a razão de meu
desinteresse atual pelos estudos.
Naquela manhã, a aula estava em meio, quando o meu
avô apareceu atendendo a solicitação da educadora. Cumprimentaram-se e em
seguida me acenaram pedindo para que me aproximasse. Quando me acerquei ela
afirmou dirigindo-se ao meu nono:
– Esse menino
anda acabrunhado demais e tão aéreo que deixou de assimilar as lições
ministradas. Penso que algo muito significativo deve ter acontecido.
Disse o meu
avô:
– De nossa parte achamos que a causa de tamanha
tristeza esta ligada ao dia de reinicio das aulas, após as férias, em que seu
coleguinha um tal de Robertinho despediu-se informando que havia se transferido para outra escola.
– Não me diga uma coisa dessas, meu senhor.O
Robertinho deixou de freqüentar as aulas por uma fatalidade do destino. Ele
jamais poderia ter estado aqui no dia do reinício das aulas pois o pobrezinho
já havia morrido afogado logo nos primeiros dias de férias.
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