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quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Cala a Boca Menino

            Quando eu contava com apenas cinco anos, meus pais se separaram e deixaram-me aos cuidados dos meus avós. Todos, inclusive meus tios e tias estavam envolvidos com os próprios problemas, que não eram poucos, já que os efeitos da segunda guerra mundial atuavam nocivamente na economia brasileira, tornando a sobrevivência  muito difícil, sendo que até o pão passou a figurar como artigo de luxo. Todo o trigo utilizado em nossas padarias era importado e as travessias acabaram ficando impraticáveis.  
Na periferia onde eu morava, numa determinada tarde, o Circo recém-chegado exibia todo o seu plantel, com os felinos enjaulados sobre as vagarosas Ramonas, enquanto os símios faziam estripulias e micagens, divertindo os moradores daquela rua, apoiados nas suas respectivas muradas.


Quando vi o elefante dobrando a esquina e caminhando altaneiro raspando a tromba no solo a procura de algo para comer, não me contive e nem sequer notei a presença de uma dezena de meus familiares que também acompanhavam o sonoro desfile. Corri para o interior da velha casa, subi na cadeira, enfiei o braço dentro da sacola de pão e retirei a enorme bengala (filão de pão) e sem perder tempo voltei na toda, e qual um verdadeiro lanceiro, ao impulso do corpo, lancei em direção ao elefante o pão que foi comprado as quatro e meia da manhã, depois de enfrentarmos uma quilométrica fila, para finalmente chegarmos no disputado balcão da padaria. 
Estava orgulhoso com meu lance que me pareceu ser uma jogada de mestre, pois toda a minha família acompanhou com os olhos arregalados a linha parabólica que o apetitoso pão percorreu, para depois pousar diante do enorme animal, que não se fez de rogado e mais do que depressa abocanhou a crocante iguaria, cujos ruídos se confundiram em meus ouvidos com os tabefes que levei da família toda, ali mesmo.
Nessa época, embora tomasse algumas bordoadas em reprimendas pelas traquinagens cometidas, o que mais me amedrontava, não eram os chamados vivos, mas, sim os fantasmas que rondavam o meu leito, divertindo-se com o apavoramento que eu demonstrava ao sair aos gritos pelo quarto afora pedindo socorro.
– Esse menino está ficando louco! – diziam os adultos - precisa ser internado no Juqueri! A culpa é dos seus pais que não tem juízo, nos mandando esse traste para fazer algazarra em plena madrugada!
Dois anos se passaram, e durante esse período, o entardecer para mim era o início de um tormento, pois, assim que anoitecia, o reencontro com aquelas estranhas criaturas parecia inevitável. Eram pontuais, bastava que me aconchegasse ao leito e lá vinham eles novamente, perfilando-se ao lado da cama, fazendo chacotas.  
Estava com sete anos e fui matriculado no curso primário da escola Romeu de Morais, situada na Vila Ipojuca. Essa casa de ensino (chamada Grupo velho) posteriormente ganhou uma sede nova, transferindo-se para a rua Toneleros no mesmo bairro.
De certa forma sentia-me feliz, pois ganhara um bom amigo, o Roberto, menino generoso que durante o recreio, dividia comigo o lanche que todos os dias sua mãe colocava em sua maleta escolar. Brincávamos chutando uma bola de pano em meio ao pátio, até o toque da sineta anunciar a ordem de retorno à classe. 
Transcorridos os primeiros meses do ano letivo, entramos em férias. Nesse espaço de tempo aguardei ansioso o dia de retorno as aulas, e quando o esperado momento chegou, dirigi-me a escola antes do horário habitual para rever o meu grande amigo.
Aguardei no pátio a sua chegada até soar o terceiro sinal e entrei na sala de aulas em companhia dos demais alunos. Sentei-me na carteira de costume e esperei pela chegada do Robertinho, colocando minha sacola de pano no assento ao lado para reservar o seu lugar . 
A professora depois de desejar a todos um feliz retorno, ao notar que havia uma carteira vazia a minha direita, determinou para que a menina Neuza ocupasse aquele lugar, já que ela encontrava-se na última fileira, sozinha.
Protestei voltando-me para a professora. Aleguei que aquela cadeira pertencia ao meu amigo e que em breves minutos ele chegaria, ao que ela depois de ajeitar os óculos afirmou enérgica :
– Cale a boca menino!
Acontece, que nesse instante o Robertinho acabara de chegar recostando-se na parede, entre a lousa e a porta de entrada.
Professora !- gritei- o Roberto chegou, nada mais justo do que venha ocupar o seu lugar!
– Cale a boca menino, já disse!
Na certa ela resolvera punir meu amiguinho, mantendo-o ali o tempo todo assistindo a aula inteira em pé, por haver chegado atrasado.
Deu o sinal de encerramento e a molecada saiu em desabalada carreira quase atropelando Robertinho que ficou a minha espera.
Você viu ?- afirmei com indignação –dona Zélia não teve a menor consideração e o deixou de castigo!
– Não faz mal - respondeu demonstrando o olhar embaciado - já não estou mais escrito nesta escola e freqüentarei outra mais próxima de minha casa nova.       
– Então me dê o seu novo endereço – solicitei - assim que puder prometo que lhe farei uma visita.
– Não se preocupe, nessa escola estarei cumprindo um horário diferente e lhe visitarei sempre que for possível.
Robertinho depois de um breve sorriso deu-me um abraço carinhoso e se foi.
A partir de então meu desempenho na escola caiu muito. Com isso a professora passou a enviar recados para os responsáveis por mim, a fim de saber o que de fato estava ocorrendo, qual a razão de meu desinteresse atual pelos estudos.
Naquela manhã, a aula estava em meio, quando o meu avô apareceu atendendo a solicitação da educadora. Cumprimentaram-se e em seguida me acenaram pedindo para que me aproximasse. Quando me acerquei ela afirmou dirigindo-se ao meu nono: 
– Esse menino anda acabrunhado demais e tão aéreo que deixou de assimilar as lições ministradas. Penso que algo muito significativo deve ter acontecido.
 Disse o meu avô:
– De nossa parte achamos que a causa de tamanha tristeza esta ligada ao dia de reinicio das aulas, após as férias, em que seu coleguinha um tal de Robertinho despediu-se informando que havia se  transferido para outra escola. 
– Não me diga uma coisa dessas, meu senhor.O Robertinho deixou de freqüentar as aulas por uma fatalidade do destino. Ele jamais poderia ter estado aqui no dia do reinício das aulas pois o pobrezinho já havia morrido afogado logo nos primeiros dias de férias.

                                                                                 Alvaro

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