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domingo, 31 de agosto de 2014

O fracasso de um Médium


Na Colônia Espiritual:
      Os internos alegam que você tem se escusado a tecer comentários que se relacione com seu passado- afirmava Castro- o único fato conhecido versa sobre sua condição de indigente. Faço essa observação, porque a melancolia que seus olhos refletem parece ocultar  algo muito importante.
       Meu passado foi pálido e sem valor, por isso, não encontro qualquer ânimo para comentá-lo.
       No entanto – redargüiu Castro – você permaneceu horas seguidas na sala de projeções, revendo as cenas de sua existência na Terra! O que nos chamou a atenção nesse particular, foram os efeitos que essas reminiscências lhe causaram, dando-nos a viva impressão, pela amargura demonstrada, que o choque do arrependimento estremeceu suas emoções.
       É verdade amigo. Pergunto-lhe, como poderia sentir-se uma criatura que, além de malsinar os dotes recebidos, ainda contraísse enormes dívidas para serem ressarcidas no futuro?
       Todos nós, bom amigo – consolou Castro – pertencemos a uma casta de Espíritos devedores. A única diferença está no montante dos débitos.


       Acontece que recebi uma das maiores dádivas que um ser encarnado poderia receber; no entanto, ao invés de multiplicar esse talento acabei utilizando – o para minha desgraça!
Calimério, por envergonhar-se de seu passado procurou ocultá-lo aos amigos; contudo, Castro lhe merecia maior atenção, em razão da amizade existente entre ambos. Chegaram juntos àquele Centro de Recuperação, e, quem sabe? Poderia dividir com o companheiro seus profundos pesares.
       Querido irmão Castro – iniciou a dizer – lembro-me como se fosse hoje e  meus pais eram humildes lavradores. Morávamos, de favores, numa casa de rancho dentro do sítio, onde trabalhávamos. Meu padrinho foi um doutor da cidade, sim, o doutor Cândido. Embora homem abastado, não se furtava ao atendimento em favor dos miseráveis. Interessante que realizava seu trabalho com tamanho desprendimento que, além de não cobrar os procedimentos médicos, ainda oferecia aos mais pobres as quantias necessárias para as compras dos medicamentos. Vivia sorrindo; parecia um anjo na Terra. No meu oitavo ano de existência, ele chegou, chamou meus pais e, com muito jeito, deu-lhes uma quantia considerável em dinheiro, alegando que aquele valor seria para o custeio de meus estudos. Depois, diante dos meus genitores, ele, sentado sobre o velho caixote que era um dos nossos bancos, enlaçou-me e aconchegou-me ao seu peito. Acariciou meus cabelos e disse-me que o futuro estaria em minhas mãos, acrescentando que elas poderiam semear esperanças nos corações.
Calimério respirou fundo, como procurando refazer-se, e prosseguiu:
       Seis primaveras depois, o sítio estava florido. Ano de chuva e abastança; a colheita foi satisfatória, e meus pais, como era costume, levaram os frutos para serem vendidos na cidade, onde, por causa da distância, ali permaneceriam por vários dias, até o término da comercialização.
Ficamos em casa, eu e Mariazinha, minha irmã de seis anos. Ela, em princípio, encontrava-se um pouco febril, mas nada que pudesse gerar preocupações. Fiz um chá de laranja com raspa de canela. Ela tomou e dormiu por quatro horas. Anoitecia e tratei de preparar um caldo e fui chamá-la, mas não despertou; insisti e nada. Fiquei alucinado. Mariazinha, com os olhinhos revirados, ardia em febre. Chovia muito. Pensando no doutor Cândido, montei no cavalo, meti-lhe as esporas e saí em busca de meu padrinho.
Havia trotado, aproximadamente, duas léguas, quando avistei um homem trajado com um terno de linho branco e um chapéu claro. Dei graças a Deus. Era o meu padrinho que deveria ter saído em socorro de alguém.
Aproximando-me dele, coloquei-o na garupa, dei a volta, e em poucos minutos lá estava minha irmã sendo medicada.
Ele sorriu e tirou do bolso do fato, um remédio redondo, do tamanho de uma lentilha; depositou-o em minha mão, solicitando-me que eu colocasse o medicamento debaixo da língua da enferma.
Meu padrinho permaneceu ali sentado no mesmo velho caixote. Assim que minha irmã se reanimou, erguendo-se da cama, ele lhe fez um breve carinho na face magra, sorriu, como sempre, e despediu-se. Emprestei-lhe o meu cavalo e  agradecendo  saiu a galope.
Cinco dias depois, meus pais retornaram. Venderam todas as frutas e legumes. No entanto, notei que estavam tristonhos. Ao perguntar-lhes o porquê do desalento, minha mãe respondeu pesarosa:
       Seu padrinho teve um ataque do coração e morreu.
       Quando foi isso? – indaguei em lágrimas.
       Dois dias antes de irmos para a cidade, respondeu meu pai, enxugando os olhos.
       Não é possível, contestei aparvalhado. O padrinho esteve aqui na noite do mesmo dia em que vocês viajaram, para prestar socorro à Mariazinha.
Meus pais fitaram-me absortos e menearam as cabeças, achando que eu estava delirando.
Permaneci calado. Evitei fazer comentários sobre o ocorrido, com receio de receber a pecha de louco. Porém Mariazinha relatou o fato aos filhos de outros lavradores com os quais, costumeiramente brincava, e  a notícia se espalhou.
        Até agora não vejo o que lhe possa desabonar! – afirmou Castro, que ouvia o amigo em suspense.
       Quando eu encerrar, você rirá da minha conduta infeliz ou sentirá pena deste infortunado! –  disse e prosseguiu Calimério:
Dos quatorze aos vinte anos, as visitas do meu iluminado padrinho eram constantes. À noite, percebia-lhe a aproximação carinhosa, convidando-me à oração e alegando necessitar do meu equilíbrio, pois havia no lugarejo muitas pessoas enfermas destituídas de recursos materiais, para se tratarem adequadamente.
Apelidaram-me de “O Afilhado”, pois, quando alguém nas proximidades adoecia, praticamente o sucesso no tratamento era garantido.
Uma cura, duas,três... E a fama correu.
Interessante, - disse Calimério, que as prescrições das receitas eram realizadas com uma segurança incrível, pois, além de ouvir o nome do medicamento a ser indicado, para que não houvesse dúvidas, meu padrinho, ao movimentar os lábios espirituais, deixava escapar letras iluminadas, para que eu pudesse colocar no papel os dizeres com acerto.
Se eu me limitasse a prestar auxílio somente às pessoas do arrabalde, sobrar-me-ia tempo para ajudar meus pais no trato do sítio. Acontece que passei a ser solicitado a intervir com ‘’meus poderes’’ em outras áreas, onde ricos sitiantes contratavam meus préstimos ‘’sobrenaturais’’, mediante pagamento. Saí do acanhado lugarejo, dizendo a meus genitores que voltaria um dia, para dar-lhes uma vida mais digna, e, quem sabe, com recursos suficientes para a compra de um sítio que seria o abrigo e o sustento para a velhice deles.
O padrinho Cândido, embora não aprovasse o novo tipo de minha atuação, ainda permanecia a meu lado, sugerindo-me valores humanitários.
Fui chamado para benzer alguns gados, a fim de livra-los de pestes que assolavam aquelas paragens. Fiz orações em favor das casas-sede e de outros bens materiais que motivavam os ricos donatários.
Certa vez, atendi uma jovem que padecia de um mal desconhecido. Ministrei-lhe os remédios costumeiros e nenhum resultado positivo foi alcançado. Diante do desespero em que se encontravam seus pais, clamei pela aproximação de meu padrinho e o divisei a certa distância; todavia, entre mim e ele havia uma nuvem escura, onde se agitavam algumas entidades que faziam um escaréu medonho. Diante daquela algazarra, não consegui ouvir uma só de suas orientações, embora ele se esforçasse para transmiti-las. Somente registrei as opiniões desencontradas dos bagunceiros.
Desejava, naquele momento, pelo menos ler as palavras iluminadas que, normalmente, nessas ocasiões, brotavam dos lábios dele, mas somente consegui visualizar as letras de seu iluminado esforço, embaçadas pelas sombras dos infelizes. Não consegui decifra-las, e, duas horas depois, a jovem desencarnou.
       E quanto à a família da moça, como se comportou mediante o desenlace? – indagou Castro.
       Seus primos enxotaram-me como se eu fosse um cão pestilento. Quando isso ocorreu, espantei-me com as gargalhadas que invadiram mais meu cérebro do que meus ouvidos. Voltei-me e vi com surpresa que a zombaria partia das entidades infelizes que passaram a acompanhar-me.
Nessa época, eu morava em um quarto de pensão e deixa-lo, mesmo durante o dia, passou a ser um martírio, com a depressão que se apossara de mim. Tinha medo de sair à rua. A vida perdera o sentido, e os acompanhantes invisíveis concordavam comigo, incentivando-me ao cometimento de loucuras.
Passei a procurar ‘’clientes’’ que necessitassem de consultas, em bares e cantinas. A bebida começou a fazer parte do meu dia- a – dia, o que fez a alegria dos meus acompanhantes. Bebia muito, porém, raramente, conseguia embriagar-me, pois eles sugavam o vapor etílico com uma força de sucção incrível.
Com isso, passei a ter comprometimento na área cerebral, ocasionando crises estertóricas. Muitas vezes, ao despertar-me, pela manhã, e quando me dava contas, estava estirado na calçada.
Deixei de banhar-me, e os clientes das cantinas passaram a expulsar-me enojados. Troquei o habitat da cidade pelas estradas como um andarilho sem rumo. Roubei e fui preso, mas consegui-me evadir. Os capitães- do – mato perseguiram-me e, nessa caçada, acertaram-me e largaram-me estirado. O resto você já tem conhecimento.
Castro balançou a cabeça em sinal de tristeza; em seguida, perguntou:
       Depois de tudo isso o que você pretende fazer?
Calimério sem conseguir ocultar uma lágrima furtiva,respondeu:
       Gostaria de retornar a Terra com nova experiência no campo mediúnico!
       E se você fracassar novamente?
       No caso de desviar-me do caminho indicado por Jesus, no “daí de graça o que de graça recebestes’’, pedirei aos amigos benfeitores que me concedam a benção do desencarne imediato, evitando uma derrotada maior. Se tal solicitação se afigurar pertinente, farei questão de ver essa cláusula inserida no contrato de minha nova existência.


Alvaro Basile Portughesi
Acaba de lançar o romance de Euzébio

‘’Anjos de Bordel’’

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