Na
Colônia Espiritual:
–
Os internos
alegam que você tem se escusado a tecer comentários que se relacione com seu
passado- afirmava Castro- o único fato conhecido versa sobre sua condição de
indigente. Faço essa observação, porque a melancolia que seus olhos refletem
parece ocultar algo muito importante.
–
Meu passado foi
pálido e sem valor, por isso, não encontro qualquer ânimo para comentá-lo.
– No entanto – redargüiu Castro – você permaneceu
horas seguidas na sala de projeções, revendo as cenas de sua existência na
Terra! O que nos chamou a atenção nesse particular, foram os efeitos que essas
reminiscências lhe causaram, dando-nos a viva impressão, pela amargura
demonstrada, que o choque do arrependimento estremeceu suas emoções.
–
É verdade
amigo. Pergunto-lhe, como poderia sentir-se uma criatura que, além de malsinar
os dotes recebidos, ainda contraísse enormes dívidas para serem ressarcidas no
futuro?
–
Todos nós, bom
amigo – consolou Castro – pertencemos a uma casta de Espíritos devedores. A
única diferença está no montante dos débitos.
–
Acontece que
recebi uma das maiores dádivas que um ser encarnado poderia receber; no
entanto, ao invés de multiplicar esse talento acabei utilizando – o para minha
desgraça!
Calimério,
por envergonhar-se de seu passado procurou ocultá-lo aos amigos; contudo,
Castro lhe merecia maior atenção, em razão da amizade existente entre ambos.
Chegaram juntos àquele Centro de Recuperação, e, quem sabe? Poderia dividir com
o companheiro seus profundos pesares.
– Querido irmão Castro – iniciou a dizer – lembro-me
como se fosse hoje e meus pais eram
humildes lavradores. Morávamos, de favores, numa casa de rancho dentro do
sítio, onde trabalhávamos. Meu padrinho foi um doutor da cidade, sim, o doutor
Cândido. Embora homem abastado, não se furtava ao atendimento em favor dos
miseráveis. Interessante que realizava seu trabalho com tamanho desprendimento
que, além de não cobrar os procedimentos médicos, ainda oferecia aos mais
pobres as quantias necessárias para as compras dos medicamentos. Vivia
sorrindo; parecia um anjo na Terra. No meu oitavo ano de existência, ele
chegou, chamou meus pais e, com muito jeito, deu-lhes uma quantia considerável
em dinheiro, alegando que aquele valor seria para o custeio de meus estudos.
Depois, diante dos meus genitores, ele, sentado sobre o velho caixote que era
um dos nossos bancos, enlaçou-me e aconchegou-me ao seu peito. Acariciou meus
cabelos e disse-me que o futuro estaria em minhas mãos, acrescentando que elas
poderiam semear esperanças nos corações.
Calimério
respirou fundo, como procurando refazer-se, e prosseguiu:
–
Seis primaveras
depois, o sítio estava florido. Ano de chuva e abastança; a colheita foi
satisfatória, e meus pais, como era costume, levaram os frutos para serem
vendidos na cidade, onde, por causa da distância, ali permaneceriam por vários
dias, até o término da comercialização.
Ficamos
em casa, eu e Mariazinha, minha irmã de seis anos. Ela, em princípio,
encontrava-se um pouco febril, mas nada que pudesse gerar preocupações. Fiz um
chá de laranja com raspa de canela. Ela tomou e dormiu por quatro horas.
Anoitecia e tratei de preparar um caldo e fui chamá-la, mas não despertou;
insisti e nada. Fiquei alucinado. Mariazinha, com os olhinhos revirados, ardia em
febre. Chovia muito. Pensando no doutor Cândido, montei no cavalo, meti-lhe as
esporas e saí em busca de meu padrinho.
Havia
trotado, aproximadamente, duas léguas, quando avistei um homem trajado com um
terno de linho branco e um chapéu claro. Dei graças a Deus. Era o meu padrinho
que deveria ter saído em socorro de alguém.
Aproximando-me
dele, coloquei-o na garupa, dei a volta, e em poucos minutos lá estava minha
irmã sendo medicada.
Ele
sorriu e tirou do bolso do fato, um remédio redondo, do tamanho de uma
lentilha; depositou-o em minha mão, solicitando-me que eu colocasse o
medicamento debaixo da língua da enferma.
Meu
padrinho permaneceu ali sentado no mesmo velho caixote. Assim que minha irmã se
reanimou, erguendo-se da cama, ele lhe fez um breve carinho na face magra,
sorriu, como sempre, e despediu-se. Emprestei-lhe o meu cavalo e agradecendo
saiu a galope.
Cinco
dias depois, meus pais retornaram. Venderam todas as frutas e legumes. No
entanto, notei que estavam tristonhos. Ao perguntar-lhes o porquê do desalento,
minha mãe respondeu pesarosa:
–
Seu padrinho
teve um ataque do coração e morreu.
–
Quando foi
isso? – indaguei em lágrimas.
–
Dois dias antes
de irmos para a cidade, respondeu meu pai, enxugando os olhos.
–
Não é possível,
contestei aparvalhado. O padrinho esteve aqui na noite do mesmo dia em que
vocês viajaram, para prestar socorro à Mariazinha.
Meus
pais fitaram-me absortos e menearam as cabeças, achando que eu estava
delirando.
Permaneci
calado. Evitei fazer comentários sobre o ocorrido, com receio de receber a
pecha de louco. Porém Mariazinha relatou o fato aos filhos de outros lavradores
com os quais, costumeiramente brincava, e
a notícia se espalhou.
–
Até agora não
vejo o que lhe possa desabonar! – afirmou Castro, que ouvia o amigo em suspense.
–
Quando eu
encerrar, você rirá da minha conduta infeliz ou sentirá pena deste infortunado!
– disse e prosseguiu Calimério:
Dos quatorze aos vinte anos, as visitas do meu
iluminado padrinho eram constantes. À noite, percebia-lhe a aproximação
carinhosa, convidando-me à oração e alegando necessitar do meu equilíbrio, pois
havia no lugarejo muitas pessoas enfermas destituídas de recursos materiais,
para se tratarem adequadamente.
Apelidaram-me de “O Afilhado”, pois, quando alguém
nas proximidades adoecia, praticamente o sucesso no tratamento era garantido.
Uma cura, duas,três... E a fama correu.
Interessante, - disse Calimério, que as prescrições
das receitas eram realizadas com uma segurança incrível, pois, além de ouvir o
nome do medicamento a ser indicado, para que não houvesse dúvidas, meu
padrinho, ao movimentar os lábios espirituais, deixava escapar letras
iluminadas, para que eu pudesse colocar no papel os dizeres com acerto.
Se eu me limitasse a prestar auxílio somente às
pessoas do arrabalde, sobrar-me-ia tempo para ajudar meus pais no trato do
sítio. Acontece que passei a ser solicitado a intervir com ‘’meus poderes’’ em
outras áreas, onde ricos sitiantes contratavam meus préstimos
‘’sobrenaturais’’, mediante pagamento. Saí do acanhado lugarejo, dizendo a meus
genitores que voltaria um dia, para dar-lhes uma vida mais digna, e, quem sabe,
com recursos suficientes para a compra de um sítio que seria o abrigo e o
sustento para a velhice deles.
O padrinho Cândido, embora não aprovasse o novo tipo
de minha atuação, ainda permanecia a meu lado, sugerindo-me valores
humanitários.
Fui chamado para benzer alguns gados, a fim de
livra-los de pestes que assolavam aquelas paragens. Fiz orações em favor das
casas-sede e de outros bens materiais que motivavam os ricos donatários.
Certa vez, atendi uma jovem que padecia de um mal
desconhecido. Ministrei-lhe os remédios costumeiros e nenhum resultado positivo
foi alcançado. Diante do desespero em que se encontravam seus pais, clamei pela
aproximação de meu padrinho e o divisei a certa distância; todavia, entre mim e
ele havia uma nuvem escura, onde se agitavam algumas entidades que faziam um
escaréu medonho. Diante daquela algazarra, não consegui ouvir uma só de suas
orientações, embora ele se esforçasse para transmiti-las. Somente registrei as
opiniões desencontradas dos bagunceiros.
Desejava, naquele momento, pelo menos ler as
palavras iluminadas que, normalmente, nessas ocasiões, brotavam dos lábios
dele, mas somente consegui visualizar as letras de seu iluminado esforço,
embaçadas pelas sombras dos infelizes. Não consegui decifra-las, e, duas horas
depois, a jovem desencarnou.
–
E quanto à a
família da moça, como se comportou mediante o desenlace? – indagou Castro.
– Seus primos enxotaram-me como se eu fosse um cão
pestilento. Quando isso ocorreu, espantei-me com as gargalhadas que invadiram
mais meu cérebro do que meus ouvidos. Voltei-me e vi com surpresa que a
zombaria partia das entidades infelizes que passaram a acompanhar-me.
Nessa época, eu morava em um quarto de pensão e
deixa-lo, mesmo durante o dia, passou a ser um martírio, com a depressão que se
apossara de mim. Tinha medo de sair à rua. A vida perdera o sentido, e os
acompanhantes invisíveis concordavam comigo, incentivando-me ao cometimento de
loucuras.
Passei a procurar ‘’clientes’’ que necessitassem de
consultas, em bares e cantinas. A bebida começou a fazer parte do meu dia- a –
dia, o que fez a alegria dos meus acompanhantes. Bebia muito, porém, raramente,
conseguia embriagar-me, pois eles sugavam o vapor etílico com uma força de
sucção incrível.
Com isso, passei a ter comprometimento na área
cerebral, ocasionando crises estertóricas. Muitas vezes, ao despertar-me, pela
manhã, e quando me dava contas, estava estirado na calçada.
Deixei de banhar-me, e os clientes das cantinas
passaram a expulsar-me enojados. Troquei o habitat da cidade pelas estradas
como um andarilho sem rumo. Roubei e fui preso, mas consegui-me evadir. Os
capitães- do – mato perseguiram-me e, nessa caçada, acertaram-me e largaram-me
estirado. O resto você já tem conhecimento.
Castro balançou a cabeça em sinal de tristeza; em
seguida, perguntou:
–
Depois de tudo
isso o que você pretende fazer?
Calimério sem conseguir ocultar uma lágrima
furtiva,respondeu:
–
Gostaria de
retornar a Terra com nova experiência no campo mediúnico!
–
E se você
fracassar novamente?
– No caso de desviar-me do caminho indicado por Jesus,
no “daí de graça o que de graça recebestes’’, pedirei aos amigos benfeitores
que me concedam a benção do desencarne imediato, evitando uma derrotada maior.
Se tal solicitação se afigurar pertinente, farei questão de ver essa cláusula
inserida no contrato de minha nova existência.
Alvaro Basile Portughesi
Acaba de lançar o romance de
Euzébio
‘’Anjos de Bordel’’
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