Eu e a Rita vivemos debaixo do mesmo teto
durante 45 anos. Tivemos três filhos, e a vida correu tão célere que nem
percebi o tempo passar. Sinceramente, nunca presenciei tamanha grandeza de
caráter e uma tão grande vontade de servir o bem. Tanto que confesso, realizei
alguma coisa em prol do meu próximo levado pela força de seu exemplo.
As crianças que moravam na favela ao lado da
nossa casa viam em Rita a sua grande confidente. Eu achava incrível a
facilidade que ela tinha para lembrar-se das datas de aniversário daqueles
piralhos.
Mas a nossa Rita começou a emagrecer...
A enfermidade implacável chegara e, aos
poucos, foi consumindo o seu pequeno corpo físico.
Depois de passar por invasiva cirurgia, fora
chamada a frequentar o hospital do câncer para fazer os exames periódicos.
Durante essa fase, travou conhecimento com as crianças que portavam a mesma
doença e passou a visitá-las, sempre levando na sacola remédios, doces,
alimentos e brinquedos.
Uma menina chamada Kaiwane, na tentativa de
retribuir os agrados feitos pela vovó branca (chamava-a assim), realizava
desenhos em uma folha de papel e os entregava para a Rita, dizendo que
desenhara aquelas figuras em sua homenagem.
Num dia tão diverso daqueles que compuseram
os 45 anos de convivência, ela fechou os seus olhos magnânimos, e os nossos
olhos, então... nem vale a pena comentar...
Seu corpo estava sobre a lousa fria quando
chegou Kaiwane trazendo nas mãozinhas a folha de papel rabiscada com as
respectivas figuras. Olhou desconfiada para o meu filho caçula, e foi quando
ele a informou que a vovó branca houvera partido para o outro mundo.
A menina olhou para os lados como se
estivesse em busca de uma solução e, como nada encontrara, ergueu a folha com
os desenhos e a colocou sobre o peito da amiga e benfeitora.
Cinco meses depois...
Viajei com minha filha e minha neta para
Brasília e ficamos hospedados na casa de amigos.
Companheiros de longa data conheceram a Rita
desde os primeiros tempos, pois estávamos sempre nos visitando e realizando
passeios juntos.
Naquele dia em especial, as lembranças
afloraram generosas. Comentei com eles a dedicação da companheira Rita que,
apesar de fragilizada pela enfermidade, dera andamento a toda à papelada de
minha aposentadoria, deixando, porém, os referidos papéis em local para mim
desconhecido.
Anoiteceu e me recolhi ao leito cerca das 23
horas, e penso que foi por volta das 3 horas da madrugada quando alguém se
aproximou do meu leito e indagou:
– Está
com muitas saudades dela?
Sem identificar o visitante respondi:
– Você nem imagina o quanto!
Para meu espanto, a criatura desconhecida,
estendendo em minha direção um ‘’telefone sem fio’’, disse:
– Então
converse com ela!
De imediato, percebi que o meu pranto
umedeceu o travesseiro. Coloquei o fone no ouvido e identifiquei de pronto
aquela voz macia dizendo:
– Oi
velho, como está?
A princípio, a minha voz não saiu, e ela
prosseguiu como se entre nós houvesse um cânion, pois, enquanto ela falava, um
eco repetia as suas frases:
– De
minha parte, estou ótima, pois os nossos irmãos espirituais foram maravilhosos,
ajudando-me a sair das mazelas enfermiças que me incomodavam logo no início de
minha chegada!
Dialogamos por cerca de 15 minutos e ela, ao
final, depois de enviar mil beijos aos filhos e amigos, disse:
– Sabe
aquela mala velha em cima do nosso guarda-roupa? Puxe-a e você encontrará atrás
dela uma pasta verde onde estão todos os papéis referentes à sua aposentadoria.
Dez dias depois...
Retornamos à cidade de São Paulo, e eu
conversava com minha filha quando ela me advertiu quanto aos cuidados que eu
deveria tomar em relação à minha aposentadoria.
Lembrei-me do ‘’sonho’’...
Subi os degraus da escada, pois moro num
pequeno sobrado. Abri a porta do guarda-roupa e retirei a mala grande. Em
seguida, alcancei a pequena pasta verde e, quando fiz correr o seu zíper, vi os
documentos que tanto havia procurado... Você já viu como é feio... um velho
chorando?
Álvaro.
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