Dizia o bispo Eleutério:
– Temos que tomar providências. Não podemos permitir que essas novas seitas ganhem mais terreno, ou será a derrocada do cristianismo!
– Não estamos alheios sobre o que está ocorrendo!- comentou um colega- Nossas igrejas tudo têm feito para neutralizar a perniciosa atuação desses novos credos, mas parece que o povo está cego e quanto mais nos empenhamos em alertá-lo sobre os perigos a que se expõe, tanto mais tem procurado, principalmente as casas espíritas!
– Quanto ao Espiritismo- opinou o bispo Sérvio- como se não bastasse o nosso esforço em desmascará-lo, contamos também com a grande maioria de outras religiões que se ombrearam a nós nessa tentativa. Os meios de comunicação mais abrangentes têm cedido espaço, oferecendo inestimáveis possibilidades para conscientizarmos a população, mas tem sido tudo em vão!
– Tudo em vão é exagero- retrucou Eleutério. – Há um padre que tem rechaçado com veemência os conceitos esposados pelo espiritismo, e o resultado não tem sido totalmente inócuo!
– De minha parte- sorriu padre Antônio, sem ocultar ironia- confesso que, além de não crer na possibilidade do espírito de alguém que tenha morrido voltar a se comunicar com os vivos, nada reclamo quanto à freqüência de fiéis em minha igreja, que vive abarrotada!
– E qual a receita?- perguntou Sérvio.
Padre Antônio há muito que deixara os velhos padrões repetitivos e solenes, que no seu entender somente promoviam maior distância entre os fiéis e o pároco. Procurava dar as suas exposições um sentido mais condizente com os problemas corriqueiros da comunidade, permitindo assim que o povo o buscasse para conselhos a respeito das coisas do dia-a-dia.
Naquele momento, porém, sentiu um certo receio de que, revelando a maneira de agir, pudesse ser admoestado pelos bispos. Respondendo simplesmente:
Na área onde atuo, concentra-se um grande número de pessoas que laboram no campo. Aquela gente tem se revelado extremamente fiel à verdade, sem se deixar enganar pelos espíritas!
–Mesmo assim- insistiu Sérvio- sugiro a todos os presentes que façam uma visita ao templo onde milita o nosso padre Antônio, a fim de que possamos avaliar o seu trabalho.
–Quando será a visita?- empalideceu o sacerdote.
–No Sábado de aleluia- respondeu, de pronto, Sérvio.
Padre Antônio folgou, respirando aliviado. Era costume seu nesse dia falar sobre Judas, comentando com invulgar propriedade os atos maléficos do traidor apóstolo.
Era Sábado de manhã. A movimentação na cidade revelava-se mais intensa do que a de costume. Dependurados nos postes, vários bonecos de pano cujos olhares sem vida deixavam transparecer um quê de melancolia. Em suas cabeças, velhos chapéus entranhados sobre porções de palha, e, no tórax de alguns, inscrições revelando a identidade do grande traidor. Amarradas nos dedos inertes, sacolas de pano, à guisa de bolsas, quais repositórios de moedas. Padre Antônio caminhava observando os fiéis, que davam os últimos tratos nos supostos Judas que seriam imolados ao meio-dia.
–Apressem-se!-
dizia o sacerdote- Dentro de meia hora o sermão vai começar! Portanto, todos
para a igreja!
Conforme o
combinado, os bispos lá se encontravam e tomavam assento em meio à platéia, com
a intenção de melhor sentir a reação dos fiéis. Em dado momento, Sérvio
comentou:
– De fato! Nunca presenciei uma igreja
tão lotada!
– Antônio tem o dom da palavra-
considerou Eleutério.
Em seu quarto junto à sacristia, padre Antônio
mirava-se no espelho enquanto ajeitava as dobras da batina. De repente uma dor
no peito, seguida de enjôo, empalideceu-o, e o suor frio escorreu de sua
fronte. Apoiou-se na parede, e em poucos segundos estava sentado com as mãos
espalmadas sobre o assoalho.
Na platéia,
o burburinho da multidão que se acotovelava para ouvir o santo padre falar
sobre o maior pecador dos discípulos de Jesus.
Com muito
esforço, Antônio arrastou-se até o leito. Necessitava melhorar, pois o povo o
aguardava; não poderia decepcioná-lo.
Agarrou-se à
borda da cama e teve a sensação, enquanto tentava erguer-se, de que estaria
levantando o mundo sobre os ombros. Sentou-se ao leito e, quase a implorar,
solicitou ajuda de seu anjo da guarda.
O quarto
encheu-se de luz, e a figura Angélica aproximou-se do sacerdote, levando a
destra luminosa sobre seu peito. O Padre conseguiu respirar a longos haustos e
em breve se encontrava em pé, embora cambaleante. A entidade enlaçou o enfermo
carinhosamente e o conduziu até o púlpito. Ali permanecendo, dando-lhe
sustentação.
O sermão se
inicia...``Falaremos hoje sobre o maior traidor de todos os tempos; criatura
inescrupulosa que teve a coragem de vender Jesus por trinta moedas! Gozou do
convívio do Messias e procurou alienar os demais discípulos no intuito de que
viessem acompanhá-lo na trilha criminosa...``
A platéia
vibrava, à medida que o orador emitia sua opinião sobre Judas.
Sérvio e
Eleutério agora compreendiam a razão pela qual aquela igreja conseguia
arrebanhar tantos fiéis em um só dia.
Quarenta
minutos são passados, e o sacerdote encerra sua condenação ao Judas, debaixo de
calorosa salva de palmas. Ainda, sob o apoio da entidade amiga que somente ele
conseguia registrar a presença, Antônio foi reconduzido a seu quarto. Sentou-se
ao leito, ergueu a fronte e perguntou agradecido:
– Quem és tu, oh iluminado? Santo
Agostinho? São Pedro ou São Paulo?
A angélica entidade, com um olhar de complacência,
afirmou:
– Não, meu
bom irmão! Sou aquele a quem chamas de traidor.
Álvaro Basile Portughesi
Nenhum comentário:
Postar um comentário