Naquela semana até parte da mobília fora substituída; objetos
adornavam a sala combinando com acetinadas cortinas. Na mesma parede onde se
encontrava luxuosa prateleira de cristais, penduravam-se entrelaçadas uma
dezena de armas munidas com balas de festim; o jardim, recebendo os devidos
aparos, se assemelhava a um forro verde pontilhado de margaridas. No grande
portão estendiam-se cordéis revestidos em púrpura, e, finalmente, aguardavam-se
finas bebidas de origem francesa.
Eis o grande dia! Tudo pronto! Chegavam os primeiros
convidados, envoltos em compridas capas, pois chovia torrencialmente. Marcos se
dividia entre abraços e parabéns.
Num cenário completamente oposto, encontra-se Mariazinha com
a enfermidade sufocante. Nenhuma dúvida, a tuberculose a acometera. Mas o que
realmente a preocupava era a febre do filho que se acentuara com a chegada da
noite.
–Esse menino não está bom! - comenta a mulher do porão.
–Não quero complicação com morte em minha casa –resmunga o
bêbado –e, além disso, é bom que essa mulher pegue sua trouxa e leve as doenças
e pestes pra longe daqui.
–Não fale assim homem, não vê que a Maria Miséria não tem pra
onde ir e depois com um temporal deste em que lugar a mulher vai se abrigar?
Mariazinha, ao
perceber que seu filho começa a delirar, levanta-se com o menino ao colo,
envolve-o com os papéis que lhe servia de colchão e sai desesperada a procura
de um médico. Corria sem rumo e quando, já inteiramente molhada, avista uma
carroça que caminha em sua direção, coloca-se à frente forçando sua parada.
– Está louca mulher! - grita o cocheiro.
–Por favor, bom homem, onde poderei encontrar um médico? –
indaga Mariazinha após reunir todas as suas forças.
–À dois quarteirões daqui reside um tal de doutor Marcos.
Mariazinha continua na direção que o cocheiro indicara.
Queria correr, mas mal conseguia andar. Chegando de fronte ao portão foi
atendida pela governanta.
-Por favor, diga ao doutor que meu filho necessita de
socorros imediatos.
A governanta observou bem a mulher que suplicava e voltou-se
para o interior da casa após fechar o portão.
–Doutor Marcos –informa a governanta- trata-se de uma mulher
com cara de santa que suplica uma consulta para o seu filho.
–Quem é? – pergunta Marcos empunhando um copo.
–Trata-se de Maria Miséria e presumo que não possua nenhum
vintém.
Marcos relanceia o olhar ao redor onde somente vê
personalidades de primeira linha e decide:
- Ora expulsa essa louca; na minha noite de glória não vou
atender a ninguém!
Mariazinha recebe a triste noticia e sai a caminhar pelas
ruas da cidade, sentindo a febre do filho a queimar-lhe o próprio peito. Muito
andou até que encontrou a Catedral, onde entrou com a intenção de abrigar o
filho. Observa o interior do templo, onde alguns castiçais permanecem acesos.
Apertou um tanto mais o menino contra o peito e depois de acomodá-lo
cuidadosamente junto ao púlpito, o deixou ali, saindo cambaleante.
Na manhã seguinte, o
cais do porto apresentava-se recoberto de poças d’água. Grandes aves planavam
sobre o oceano, roçando suas plumagens nas ondas. Os primeiros raios de Sol
vieram encontrar Mariazinha morta com a fronte recostada em um velho barril,
sem que ninguém lhe colocasse uma flor sobre o peito. Foi recolhida pelo carro
público, para poder ser enterrada como indigente.
Passam-se oito anos, o menino enfermo encontrado no púlpito
recebera os melhores cuidados por parte dos religiosos responsáveis pela
Igreja. A comunidade o adorava.
Na sua luxuosa residência, doutor Marcos ao barbear-se é
tomado por súbito mal-estar e alegando indisposição, dirigi-se ao seu quarto, e
soltando um grito lancinante, cai bruscamente ao solo. A mulher e a filha
apressam-se em socorrê-lo com massagens em seu tórax, mas nada puderam fazer.
Cerca de uma hora após
o ocorrido, a residência de Marcos já recebia um grande número de amigos
ilustres que lamentavam a perda do companheiro. Seu corpo jazia inerte, mas
seus sentidos funcionavam, e o odor que exalava das velas acesas ao seu redor,
causava-lhe náuseas. Gritava desesperado pedindo para que o retirassem dali,
mas ninguém parecia ouvi-lo.
–Tirem-me daqui antes que eu perca a paciência! Minha filha,
diga-lhes que o teu pai esta vivo! Tirem-me daqui pelo amor de Deus!!!
Seus amigos, no
entanto, indiferentes, faziam menção de fechar a tampa do caixão. Foi quando de
um grande salto, Marcos vê-se em liberdade.
–Ah! até que enfim - respirou aliviado, mas quando percebeu
que o cortejo fúnebre prosseguia, Marcos postou-se à frente, gritando:
–Ei,
parem!!! Estou aqui seus idiotas!
Doutor Marcos perdeu-se no tempo e no espaço. Ora
sentia-se deslizando no velho cais do porto onde ratazanas gigantes roíam-lhe
os pés; ora, forças dantescas arrastavam-no sob carruagens. Via-se constantemente
caçado. As mangas de seu paletó estavam tingidas de sangue que escorria de seus
supercílios.
Quando julgava não mais
suportar tantos desatinos, lembrou-se de sua mãe e resolveu recorrer a prece.
Fato que o deixou com uma calma tal, que ao longo da existência nunca houvera
sentido.
Como se fora um presente,
vislumbra uma estrada. As margens do caminho postam-se enfileirados pequenos
pinheiros, cujos troncos e ramos vestem-se de um branco cintilante.
Em pouco tempo detém-se diante
de um portão onde alguém, oculto por um véu muito alvo, o recebe com especial
atenção. Marcos ansioso disse:
–Pela luminosidade que escapa do interior dessa
morada, deduzo que deve tratar-se do paraíso que estou a procura. Sempre fui um
médico generoso, fato que me autoriza residir nessa estância celeste!
–Sim amigo - disse a angelical Entidade - mas antes
vejamos a sua ficha, ela resume a sua história.
Para espanto e surpresa de Marcos a luminosa
criatura depois de abrir um livro de registros, passou a ler determinada
página:
‘’Numa rua modesta de pequena cidade,
a noite mistura-se a tempestade;
cantos, luzes e pomposa festa,
aniversaria o único doutor da localidade.
Parentes e amigos parabenizam o anfitrião
Balas de festim dão vivas ao aniversariante,
enquanto alguém com insistência bate ao portão.
Cala-se a euforia por algum instante’’.
Volta em forma com ironia a governanta
é a Maria Miséria. Quer consultar o filho e não
possui vintém.
Ordena o doutor: Expulsa essa louca com cara de
santa.
Em minha noite de glória não vou atender à ninguém!
Eis aqui tua pequenina história doutor-diz o anjo.
Marcos percebendo o tom familiar na voz do
atendente, solicita-lhe
para que retire o véu que
lhe encobre o rosto.
– Pois
não meu irmão aqui está...
– Maria
Miséria!!! Es tu, anjo bendito iluminado!? E esse peito teu queimado, o que foi
que te sucedeu?
– Foi
o embrulho em brasas, de febre do meu filho, que queimou meu peito e o coração
naquela noite em que não me atendeste em teu portão.
O médico em prantos grita:
– Por Deus agora reconheço que nem mesmo o
inferno... eu mereço!
Do Espírito Euzébio.
Médium Alvaro Basile Portughesi.
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